Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."

Fábula da Cigarra Enquanto a Formiga Dormia

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Fábula da Cigarra Enquanto a Formiga Dormia

Foi na primavera dos teus braços, enquanto a luz da vida despontava, que encontrei esse bosque de carícias e afagos a retemperar uma alma perdida e ansiosa e capaz de amar. E foi no florir sumptuoso de cores e emoções que bebi a tua água por entre sussurros e palpitações. E os passarinhos cantavam nesta história e ao fundo, num simulacro de efeitos especiais, Julie Andrews cantava a música do meu coração. E houve vivas e saudações, sombras frondosas e naturezas presentes, e houve todo o pólen, toda a magia na fábula da cigarra enquanto a formiga dormia. Adensou-se o bosque. Cresceram as árvores guindando-se aos céus e perderam-se os limites, os teus e os meus. Um lago imenso, calmo e tranquilo, reflete a luz e o caminho. Um trilho de terra com pequeninos malmequeres que não atravesso sozinho. Há um casalinho de mão dada. Ele de calções. Ela de saia rodada. E sem saber-se porquê, magia de certo, passa um duende por perto que sorri e pula. Não há sobressaltos. Só dois corações pulsando, as borboletas o ar cruzando, uma leve brisa deixando as ervas altas e as flores em breve dança. E a luz. Sim, essa diáfana luz forçando a densidade do bosque e banhando de claridade a penumbra onde o amor se fez verdade. E lei. A única lei. Sem papel nem escrita. Só a sua explanação, o seu viver num bater de coração, numa mão entregue, numa cena bonita. E há uma árvore alta e idosa a caminhar para os céus que tem na base uma loca onde vive a cigarra e os seus. Sentiu passos e veio ver o amor. E quando lhe perguntaram, as crianças, aconchegadas no lar acolhedor, o que passava, ela respondeu, quase desinteressada, como que não importunando, É a Primavera do amor. E chegaram, sem desdar as mãos, a uma clareira toda rodeada de canas. Era circular o espaço e tinha uma abertura em arco na vegetação, um convite que aceitaram sempre mão na mão.

Era o Verão. A amplitude do espaço e do tempo, searas dançando, aromas quentes no ar. Abriram os braços e afagaram a flor do trigo. Árvores pontuais a prover a sombra necessária para o coração descansar do ritmo quente e louco da paixão. E correram. E libertaram-se. E foram dando vivas às aves, à terra firme e ao céu azul e limpo. E via-se longe. E o mundo parecia não ter fim. Viviam um amor assim. Uma loucura consentida, uma centralidade perdida. Uma trepidação constante. E despiram-se. E fizeram amor. E sexo também. E viveram os dias como se não houvesse ninguém. E suaram o suor da descoberta na tarde caindo, a luz certa. Ao longe, uma ovelha branca balindo. E eles sorrindo. Amando sob o calor do Verão, dos corpos desnudados em paixão. E, pela primeira vez, entre eles, a semente de tudo, o princípio de todas as coisas: a palavra. A que cria e germina, a que alimenta e saceia, a que começa e termina, a que perde e norteia, a palavra que dá a vida e a morte, a mesma palavra que faz dos homens seres. A sorte. A palavra primeira que disseram foi Despertar, depois Encontro, depois Amar, depois disseram as palavras todas e uma vez gastas estas, reinventaram-nas. E disseram-nas todas outra vez. Assim como quem faz só porque fez. E gostou. E tudo se amou dentro dos limites seus. Só não disseram Adeus. Essa palavra doce e suave que queima. Guardaram-na para o Outono mesmo sem saber o que seria e quando viria se viesse. Quem olhasse a seara ao nível da altura do trigo, veria uma imensidão doirada banhada de sol sob o céu azul e deles, nem notícia, Mas a cigarra tem experiência e perícia e anunciou à filharada um passeio, um voo rasante sobre a seara doirada. E partiram de asa aberta e alma livre e repararam ali, a meio de lugar nenhum, sob o céu, sobre a terra, uma rodela de trigo que faltava como se estivesse pisado e amachucado por um transeunte descuidado. E estava! E eram dois os safados que rolaram em amores amados e deixaram circular marca na vegetação. A cigarra viu e entoou a canção do amor ali mesmo, sob o céu amplo e ao calor. E repetiram os filhos aquilo que ouviram e tendo cantado, logo partiram. E ao partir sentiu-se pequena aragem. E fria. Dona cigarra fez uma paragem, estendeu o dedo no ar e anunciou, Estão mudados os ventos, vêm aí novos tempos, vai mudar a sorte, sinto no horizonte um prenúncio de morte…

Rederam as mãos que tinham desdado para tatear os corpos, levantaram-se e correram a fugir da nuvem escura, da bátega de água certa, e enquanto a luz dura, caminham alerta em busca do bosque. Lá estava a abertura em arco nas canas e depois dela a clareira. Tudo igual e tudo diferente. Fosse ação natural ou de gente, algo havia mudado. Tudo.

As árvores choravam humidade e seus ramos despediam-se das folhas, os animais faziam escolhas de abrigos, a evitar os maiores perigos. Um tapete folhado e colorido cobria o chão de amarelos, laranjas e castanhos, e chegam ao bosque acolhedor habitantes que no Verão lhe são estranhos. Eles entraram e beberam. Olharam o lago e contemplaram o reflexo e estranharam não se terem visto na imagem refletida. Assim, com um misto de tranquilidade e tristeza, perceberam que já lá não estavam. Faltava só a partida. A despedida. E com o brilho e a lágrima no olhar, decidiram caminhar lado a lado, pelo frondoso bosque, agora inundado de silêncio. E num ponto do caminho, a estrada dividiu-se. Aí chegaram como se nunca lá tivessem estado. Ela imóvel. Ele parado. E duas coisas aconteceram, duas tragédias numa só. Juntamente com as plantas que feneceram, um gesto e uma palavra reduziram o amor a pó. Desderam as mãos em passos tranquilos. Foi o gesto. Ergueram os braços seus e pronunciaram em coro uníssono: Adeus!

Impassível ficou o bosque. Seguiram e levaram a memória do toque, do odor, das palavras, do olhar, do amor e das promessas e continuaram lado a lado, sem pressas, afastando-se um do outro. Não se sabe nesta história onde leva cada estrada. Sabe-se que uma conduz a tudo e outra ruma a nada. Só falta saber o mais sério que é se vão cruzar-se. Mas isso permanece mistério. Sendo certo que saberão amar-se na presença e na ausência. Agora e aqui, estão separando-se unidos. Vencedores e vencidos. Do corpo. E do coração.

A cigarra jaz morta de frio. Não lhe aprouve o canto no Verão. A formiga, que trabalhou no Estio, dorme quente no colchão. E acorda. Serena. E olha em volta e encontra-se. Estava perdida no sono e agora desperta para a vida sem saber que quem acorda no Outono, ainda que quente e aconchegado, sem ter visto o amor empolgado dos amantes na seara quente e no tempo absorto, não esteve dormindo, esteve morto. Ah formiga que vives com o corpo da cigarra tombado e inerte a poucos metros daí, se pudessem agora ver-te, os amantes teriam pena de ti. Tem mais vida esse cadáver vencido que sentiu a pujança do amor do que o teu corpo aquecido e gasto pelo suor cego do labor. Nunca saberás o voo sobre a seara, o sol amanhecendo paixão, nunca correste o risco que se exige ao mortal para que se liberte da eterna prisão. Vives adiada e ela morre saciada e há mais vida na sua morte do que na tua pobre e estéril sorte.

Nunca contarás aos teus filhos, como ela fazia, a fábula da cigarra enquanto a formiga dormia.

jpv

Autor: mailsparaaminhairma

Desenho ilusões com palavras. Sinto com palavras. Expresso com palavras. Escrevo. Sempre. O resto, ou é amor, ou é a vida a consumir-me! Há tão poucas coisas que valem a pena um momento de vida. Há tão poucas coisas por que morrer. Algumas pessoas. Outras tantas paixões. Umas quantas ilusões. E a escrita. Sempre as palavras... jpvideira https://mailsparaaminhairma.wordpress.com

14 thoughts on “Fábula da Cigarra Enquanto a Formiga Dormia

  1. Reblogged this on Mails para a minha Irmã and commented:

    Uma vez tentei escrever um poema em prosa contando uma história. Aconteceu-me esta fábula. É um texto singelo, mas gosto dele como se se tratasse de algo precioso… jpv

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  2. Se tem uma coisa que faço pouco e parcimoniosamente é chorar. E, no entanto… Estás feliz, agora? (Estou a zurzir, eu acho, como o fizeste primeiro: “Vives adiada e ela morre saciada e há mais vida na sua morte do que na tua pobre e estéril sorte.”)
    Nos falamos amanhã. O cotidiano me chama…
    acs

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    • Sim, minha Amiga. Falamos amanhã. Faltam 20 minutos para começar o jogo do Benfica e eu tremendo, equipado a rigor… e me lembrei dessa amiga das palavras que as namora e seduz com sotaque e… mestria… ainda bem que gostou da história. Fiz em prosa mas quis que soasse a poesia… contradições ou talvez não… Não estou feliz por tuas lágrimas, mas por nossa sintonia! Tenha uma boa noite. jpv

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      • Oh, meu amigo, sinto pela derrota do Benfica, ainda mais assim, de forma tão dramática. Como está o coração? Se está bem, é por que não sofre de qualquer cardiopatia, veja por este lado. Sei que vice-campeonato não se comemora, ainda mais quando toma ares de maldição, mas alegre-se, vá.
        Quanto à sua prosa poética, não se desculpe, a intenção inicial nunca é ferir, é apenas tocar. E tocou.
        Boa noite
        acs

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        • Olá! Olhe, eu nem cheguei a ficar muito triste! Esse time tem feito tudo tão bem que a gente releva…
          Sim, era tocar… quis que fosse quase como uma canção. Uma dolente canção…
          À parte: tem algo me perturbando… uma comichão na mente: como é que se pronuncia seu nome? O apelido, bem entendido! Cinco consoantes seguidas! SÊ quase não deixava consoante para a gente usar. E olhe que me fazem falta!

          Grato por sua solidariedade futeboleira!
          jpv

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  3. Que linda história! É pena que já não se veja no seu blogue, pena que não exista um índice para poder encontrá-la mais tarde.
    Merece bem uma nova publicação!!!

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