Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."

O Ofício da Memória – 2 – Verão

3 comentários

Verão

Toda a primavera dá lugar a um verão. E o nosso também chegou. Quente, por sinal. E com o verão chegou o fim das aulas. Há já algum tempo que pairava entre nós certa apreensão mesmo que não confessada. Era a incerteza de não sabermos como seria a vida depois do final das aulas. Era a antecipação de que poderíamos não sobreviver a essa separação porque as nossas vidas tinham caminhos diferentes. Muito diferentes. Fiz um exame importante e a MJ esteve sempre a meu lado. No fim, quando nos despedimos, ambos sabíamos que não havia qualquer razão para voltar à escola. Era verdade, um facto incontestável, que nos amávamos profundamente como só na adolescência se ama, que gostaríamos de passar o tempo das nossas vidas lado a lado. Mas era também verdade que ambos queríamos outras coisas da vida, mais coisas da vida. Caminhadas de aventura com outras pessoas, noutros locais.

E, com a mesma espontaneidade com que começáramos a namorar, assim terminámos. Não houve juras. Não houve promessas. Fomos juntos até onde o caminho nos separava. Abraçámo-nos longamente. Não nos beijámos. Todos os beijos haviam sido dados com toda a intensidade possível. Uma vez mais decidimos não decidir nada. Dissemos qualquer coisa desacertado como Até breve, Até já, Vemo-nos por aí, Vemo-nos por aí.

Lembro-me de que tínhamos as mãos dadas e lembro-me do momento em que as soltámos e as minhas ficaram de novo vazias no extremo dos meus braços caídos ao longo do corpo. E quando voltámos costas, levávamos a esperança de nos reencontrarmos depois das aventuras que havia para viver. Perdemo-nos ou encontrámo-nos nessas aventuras. O que foi não interessa para esta história. Interessa que nunca mais nos vimos. Passaram vinte e oito primaveras e vinte e oito verões de saudade e ternura. De memórias gratas. De revisitações frequentes à fantástica mulher que me engatou com uma Bolacha Maria, que caminhou a meu lado por montes e cabeços, que me beijou apaixonadamente e com volúpia, que me preencheu as mãos, que me iluminou os dias, que chegou suave e suave me viu partir. O tempo, inexorável, não volta atrás, não devolve o que se viveu nem oferece o que não se viveu. Só a memória pode ser um doce lenitivo para as ausências e para as falhas do que não se viveu porque se não quis ou não pôde. Mas a memória desvanece-se. A escrita pode, contudo, reter estilhaços, preservar o que se sentiu, o que se experienciou. E por isso escrevo estas linhas. Para oficiar a memória. Para não deixar escapar entre os dedos a grata recordação de um amor tão intenso quanto puro, quanto ingénuo, quanto efémero. Escrevo-te, MJ, para te não perder. Assim como quem grava uma tatuagem na alma.

À MJ,
primavera de sempre.

jpv

Autor: mailsparaaminhairma

Desenho ilusões com palavras. Sinto com palavras. Expresso com palavras. Escrevo. Sempre. O resto, ou é amor, ou é a vida a consumir-me! Há tão poucas coisas que valem a pena um momento de vida. Há tão poucas coisas por que morrer. Algumas pessoas. Outras tantas paixões. Umas quantas ilusões. E a escrita. Sempre as palavras... jpvideira https://mailsparaaminhairma.wordpress.com

3 thoughts on “O Ofício da Memória – 2 – Verão

  1. Oh… Isa, agora fico assim meio sem jeito! Mas muito obrigado por sua consideração. Você sabe que eu sigo seu blogue com interesse, mas, de facto, você agora teve um gesto de extraordinária dignidade e carinho. Mil Obrigados. Um beijo igualmente carinhoso.

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  2. João, vou colocar você na minha lista de escritores preferidos 🙂
    Comoventes, todos os três capítulos. Gostei imensamente.
    Um beijo carinhoso!

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  3. Muito terno, muito bonito e muito emocionante.
    Parabéns.

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